A casa arquetípica e os elementos da narrativa

Era um típico dia de trabalho e estávamos viajando para a praia dos Carneiros, no litoral de Pernambuco. No carro havia 03 ou 04 montadores que ficariam ao longo da semana montando os móveis planejados em um Flat de frente para o mar. O clima era de entusiasmo e expectativa, até que num dado momento um dos profissionais lembrou dos tempos difíceis em que morava nas ruas, seus olhos marejavam e ele começou a nos relatar uma série de infortúnios que só quem passa por esse tipo experiência pode realmente compreender. Não é fácil ouvir esse tipo de história e ficar impassível, e sentíamos todos uma nuvem densa no ar…

A partir daí uma coisa estranha começou a acontecer; um a um, todos os que estavam no carro, começaram a lembrar e relatar os sofrimentos que passaram em suas infâncias: abuso dos pais, espancamentos, abandono, negligência, pobreza, fome, etc… Não me surpreendi com a universalidade do sofrimento, mas precisei me apegar a uma ideia: é preciso resistir a tentação e não entrar nessa disputa para saber quem teve a infância mais ferrada! Naquela altura, também sentia um impulso muito forte de contar meia dúzia de histórias tristes da minha infância, e logo percebi que havia algo naquela viajem que estava nos impulsionando para a autocomiseração. Apenas muito tempo depois eu consegui compreender o que havia ocorrido naquela viagem, e até o fim desse post você também entenderá…

Pra quem não sabe, tenho sociedade em uma empresa de móveis planejados, a Casa Planejada, e isso me coloca numa posição muito privilegiada com outros seres humanos. Estou frequentemente em contato com muitas pessoas, e principalmente com os espaços íntimos de muitas famílias, suas casas, e isso me possibilita os conhecer para além do que falam de si. Mas não só isso, tenho também o privilégio de passar bastante tempo junto dos trabalhadores que transformam os nossos projetos em realidade, os montadores.

Os clientes e os montadores no geral pertencem a dinâmicas sociais muito diferentes, mas é claro que eles também tem algo profundamente em comum. Eles se compreendem a partir da narrativa pessoal, a história que cada um conta pra si a respeito de sua própria jornada, definindo assim a paisagem mental que se repete de forma inconsciente inúmeras vezes dentro de suas cabeças, e é sobre isso que conversaremos hoje.

No post anterior, explicamos as bases teóricas da psicologia analítica e o que são os arquétipos, hoje abordaremos os elementos da narrativa e sua relação com a individuação, e principalmente, o que tudo isso tem a ver com o design de interiores e a função simbólica do morar.

Antes de tudo vou lhes propor um pequeno exercício; faça uma pausa e reflita sobre o seu herói favorito. Recorra mentalmente à sua jornada, desde o início até o desfecho. Em seguida, compare essa trajetória com as etapas típicas da odisseia de um herói, conforme descrito a seguir:

O herói tem quase sempre pais divinos ou nobres, sendo ao mesmo tempo filho de seres humanos normais. A gestação, a gravidez, o nascimento e a primeira infância suportam uma grande carga. Algumas vezes os pais são estéreis, outras vezes o herói é rejeitado desde o princípio; ou seu nascimento tem de se realizar em um local secreto, ou ele deve ser morto e exposto. Sendo de origem nobre e divina, experimenta o sofrimento da criança abandonada, desamparada, cuja verdadeira natureza a princípio não é reconhecida. É ao mesmo tempo poderoso e carente.

Educado por pais adotivos ou por animais, em sua juventude ele logo revela talento, habilidades e poderes especiais. Excelentes mestres ajudam-no a aperfeiçoar suas habilidades e conhecimentos. Adquire suas armas pessoais, quase sempre de procedência e qualidade especial. Muitas vezes encontra também um animal, fiel companheiro – em geral cavalo, cão ou pássaro –,que se distingue pela inteligência, segurança instintiva e força.

Recebe então uma missão ou um chamado para partir em viagem. Depois das adversidades iniciais, que se revelam no próprio medo, desânimo ou através dos avisos de outras pessoas, põe-se a caminho. Até que a verdadeira luta acontece, ele tem de passar por uma série de pequenas aventuras. Por exemplo: encontra outro herói, a princípio hostil, com o qual luta, e que demonstra a mesma força. As vezes, une-se a ele pela amizade.

A verdadeira luta do herói leva-o a penetrar em esferas desconhecidas e estranhas. Pode tratar-se de um lugar secreto, de difícil acesso, onde atua um poder sinistro e ameaçador, por exemplo um monstro semelhante a um dragão, um inimigo perigoso ou então a morte. Depois de uma luta difícil, quase fatal, o herói consegue superar esse poder inimigo. Em seguida, ganha um tesouro (ouro, reino, conhecimento, fama) e uma jovem virgem, com a qual se unirá e terá um filho.

É provável que você tenha percebido muitas semelhanças na estrutura narrativa da sua história de herói favorita com esse esboço das etapas da odisseia heroica. Essa recorrência parece nos apontar para um elemento comum do inconsciente coletivo que nos guia em direção ao percurso da construção de um ser humano melhor, que independente de suas origens, se esforça na ampliação de suas capacidades e consciência, e se mantém na busca pelo domínio criativo da vida, pela superação dos dragões, figura simbólica das dificuldades, modificando a si mesmo a cada batalha e o ambiente que o circunda.

Essa jornada revela-se um contínuo processo de mutação, jamais o concretizamos por completo e por isso a viagem e o caminho, expressos na estrutura narrativa, são os símbolos para o processo de individuação. E também por isso que os heróis nos fascinam, eles personificam esse desejo humano tão profundo de transcendência e superação.

A essa altura você deve estar se perguntando; por que justamente a figura do herói requer essa procedência modesta e inferior, cheia de infortúnios e ameaças? Por que ficamos tão interessados em narrativas que envolvem a superação de obstáculos tão desafiadores, vividos por personagens que muitas vezes são humilhados e desprezados em seu ambiente de partida? A resposta é simples: O herói expressa nossa esperança de superação diante das limitações do nosso ponto de partida e incompreensão da vida. Ele expressa nossa capacidade de evoluir desde que abracemos a jornada suportando a desaprovação, medos e riscos de crescer e cair diante dos obstáculos e do julgamento alheio. Se fizermos isso, descobriremos por fim que o tempo todo o herói somos nós, e a jornada a própria vida.

O maior perigo da jornada é o risco de continuar fixado na figura da criança abandonada, incompreendida e repreendida pelos pais. São muitos os que continuam repetindo a mesma história de abandono sem se dar conta que a qualquer momento podem reassumir o curso de suas vidas e construir uma nova narrativa heroica para si mesmo a despeito do ponto de partida. Além disso, é importante nos conscientizarmos que parte das crenças que atualmente definem nossas narrativas foram formuladas por uma versão infantil nossa, que além de ingênua, é desprovida de entendimento, repertório e recursos para obtenção de insights e feedback apropriado.

É hora de atualizar as crenças e contar uma nova história para si mesmo, a ajuda não virá de fora, os heróis, assim como todas as demais figuras arquetípicas que exploraremos no contexto da decoração mantém entre si uma relação orgânica de sucessão por estágios que determinam o crescimento da consciência por meio de movimentos de circunvolução. É por isso que a figura do herói se repete em tantos momentos a medida que evoluímos. Novos desafios nos são apresentados, e com isso a nossa psique vai se fortalecendo com novas ferramentas e habilidades.

Com tudo o que foi dito até aqui, talvez tenha ficado claro como os elementos da narrativa são importantes para o desenvolvimento da casa arquetípica. Nossa casa conta muito da nossa história, e nossa história é uma narrativa construída a partir da seleção dos protagonistas que vamos elencar que por sua vez definirão nossa perspectiva para a vida.

Esses protagonistas são expressos a partir de escolhas muitas vezes inconscientes de figuras que os expressam de forma simbólica no ambiente em que vivemos. Essas figuras arquetípicas podem nos apoiar a medida em que nos individuamos, ou podem nos reter em fixações e narrativas disfuncionais. Por exemplo: você pode viver um local que expressa claramente o arquétipo do inocente, quando na verdade você precisa constelar em sua jornada o arquétipo do governante, explorador ou do herói de si mesmo. Nesse exemplo, o espaço não lhe apoia em sua jornada pessoal.

É claro que o arquétipo do inocente tem o seu momento e lugar para se expressar em nossas casas, e isso inclusive será tema do próximo post da série. O importante agora é deixar claro que podemos usar esse recurso, a expressão simbólica da figura arquetípica, para nos apoiar em nosso processo de individuação.

Nos dois primeiros parágrafos desse texto ilustrei como a constelação de um arquétipo pode influenciar nossas lembranças em um contexto simples de conversa dentro de um espaço limitado, o interior de um carro numa viagem. A hipótese que estamos trazendo com essa série é ampliar essa ideia e pensarmos no quanto podemos ser intencionais na expressão simbólica do espaço em que vivemos para apoiar nossas metas ao longo da vida, especialmente no contexto da individuação.

Por mais inovador que isso possa parecer, já o fazemos em ambientes comerciais com bastante fluência. Escritórios de advogados, consultórios médicos, igrejas, todos esses ambientes expressam seus arquétipos com relativa maestria. A nossa proposta é trazer esse mesmo grau de consciência simbólica para o contexto residencial e no contexto da jornada da individuação.

Pra quem não sabe, a individuação é um conceito central na psicologia analítica. Refere-se ao processo de realização do self, que é a totalidade e a integração da personalidade de uma pessoa.

Segundo Jung, a individuação envolve a busca pela integração de todos os aspectos da psique, incluindo partes conscientes e inconscientes, pessoais e coletivas. Esse processo não é apenas de autoconhecimento, mas também de desenvolvimento e crescimento pessoal, no qual a pessoa se torna mais completa e autêntica.

A individuação pode envolver confrontar e integrar aspectos menos desenvolvidos da personalidade, como qualidades negadas ou reprimidas, bem como reconhecer e integrar influências culturais, sociais e espirituais. É um processo contínuo ao longo da vida e pode resultar em maior autoconsciência, criatividade e uma sensação de significado e realização na vida.

Temendo ser simplista, podemos resumir dizendo que a individuação é um processo do amadurecimento na busca pela singularização, e o indivíduo singularizado torna-se mais pleno para ocupar o seu devido lugar no mundo, sendo portando, um benefício para si mesmo e para todos a sua volta. Além disso, podemos propor que sua personalidade singular se expressa de forma original no ambiente em que vive.
Com isso concluímos a introdução teórica dessa série e espero ter deixado clara a nossa hipótese.

No próximo post iniciaremos a jornada pelos principais arquétipos e como eles se expressam no contexto da decoração, e se por ventura algo não tenha ficado claro, será a oportunidade de esclarecer.

Se quiser saber um pouco mais sobre as experiências típicas do processo de individuação, clica aqui.

Caso tenha ficado em dúvida sobre algum termo, consulte nosso pequeno glossário de psicologia analítica: https://www.sombrasdomeiodia.com.br/p/glossario-de-psicologia-analitica.html

@leo.climaco

Designer de interiores e psicanalista
Percurso em Psicologia analítica Junguiana
Pesquisa a relação da experiência do morar com os aspectos simbólicos da decoração.

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